Há um momento estranho em que um artífice competente começa a entregar abaixo do seu nível - não por falta de técnica, mas por adequação insuficiente do projeto. A peça sai “bem feita”, o cliente continua insatisfeito e a equipa fica exausta a corrigir detalhes que nunca deviam ter sido prioridade. Para quem vive de resultados, este erro é caro porque transforma esforço em retrabalho e reputação em ruído.
Vi isto acontecer numa obra pequena, dessas que parecem simples no papel. O plano estava “quase” certo, o prazo era apertado, e toda a gente decidiu avançar para não atrasar. Duas semanas depois, o problema não era a execução: era o encaixe. O projeto não estava ajustado ao contexto real - e tudo o que veio a seguir foi remendo.
O erro comum: fazer melhor quando o projeto está mal ajustado
Quando existe adequação insuficiente do projeto, o instinto de bons profissionais é nobre e perigoso: compensar com mais qualidade, mais horas, mais detalhe. Só que qualidade não corrige uma premissa errada. Corrige a superfície, enquanto a causa continua ativa.
É aqui que um artífice se perde: ele mede o seu valor pela perfeição do trabalho final, mas o resultado é medido pelo “serve para quê, para quem e em que condições”. Se estas perguntas não estiverem fechadas, a excelência vira desperdício.
Pense nisto como uma peça feita à medida… com medidas erradas. A costura pode ser impecável; o facto de não assentar no corpo continua lá.
Como reconhecer que não é um problema de execução
Há sinais discretos que aparecem cedo, quase sempre antes do primeiro grande erro. O projeto “puxa” contra o trabalho, como se cada decisão técnica exigisse uma micro-justificação.
Alguns sinais típicos:
- O cliente muda critérios a meio (“afinal era mais simples”, “afinal era mais robusto”).
- A equipa discute detalhes porque falta uma regra de decisão clara.
- O prazo parece apertado mesmo quando a execução está a correr bem.
- Surgem muitas exceções (“só aqui é diferente”) e improvisos que viram padrão.
- O retrabalho aparece em cascata: uma alteração pequena obriga a refazer três coisas.
Um teste rápido ajuda: se duas pessoas competentes olham para a mesma tarefa e escolhem soluções opostas, provavelmente não é falta de talento. É falta de enquadramento.
Porque isto acontece precisamente com bons profissionais
Profissionais fortes têm uma característica em comum: baixa tolerância a entregar algo “mediano”. Quando o projeto está mal ajustado, essa virtude transforma-se num motor de compensação. A pessoa segura o problema nos ombros em vez de o devolver ao sítio certo: o briefing, as premissas e os critérios.
Há também uma armadilha social. Questionar o projeto pode soar a resistência, a complicação, a “falta de espírito de equipa”. Então o artífice cala a dúvida e fala com as mãos: resolve na prática. Só que o projeto não se resolve na prática; ajusta-se no desenho, no alinhamento, na decisão.
“Trabalhar mais” é uma resposta honesta. Só não é a resposta certa quando a direção está errada.
Como corrigir sem drama: três alinhamentos antes de produzir
A correção não começa na ferramenta. Começa na conversa. E não precisa de virar reunião infinita; precisa de virar critérios.
1) Fechar o “para quê” em uma frase
Peça uma frase simples que qualquer pessoa consiga repetir. Se não houver, o risco de adequação insuficiente do projeto é alto.
Exemplos úteis: - “Isto serve para reduzir tempo de operação em X.” - “Isto serve para aguentar uso intensivo em Y condições.” - “Isto serve para ficar pronto até Z, com manutenção mínima.”
2) Definir o que é “bom o suficiente”
Sem isto, a equipa tenta adivinhar excelência. Determine limites claros: tolerâncias, acabamento, durabilidade, estética, custo e prazo - e quem decide trade-offs.
Uma regra prática: se não sabe o que vai sacrificar quando houver conflito, o conflito vai decidir por si.
3) Validar com um protótipo pequeno (ou um corte de teste)
Em vez de apostar tudo no produto final, crie um “mini” que responda à dúvida principal. Pode ser um mockup, um piloto, uma amostra, uma visita ao local, um teste de carga, uma simulação.
O objetivo não é impressionar. É reduzir o espaço entre o projeto e o mundo real.
Um método curto para não cair na mesma armadilha
Antes de aceitar “executar já”, use este check-in de 5 minutos. Funciona para obras, design, software, eventos e processos.
- Contexto: onde isto vai ser usado, por quem, e em que condições?
- Restrições: o que não pode acontecer (falha, atraso, custo, risco)?
- Critério: como vamos decidir quando houver duas opções boas?
- Validação: qual é o teste mais barato que confirma o caminho?
Se alguma resposta estiver vaga, não é sinal para trabalhar mais. É sinal para ajustar o projeto.
| Sintoma no dia a dia | Causa provável | Próximo passo |
|---|---|---|
| Retrabalho repetido | Critérios mudam | Congelar requisitos e trade-offs |
| Discussões de detalhe | Falta de “para quê” | Reescrever objetivo em 1 frase |
| Pressa constante | Escopo mal definido | Reduzir escopo ou rever prazo |
O ponto final que muda resultados
Bons profissionais não falham por falta de competência. Falham quando aceitam ser a solução para uma inadequação insuficiente do projeto, tentando compensar com esforço aquilo que devia ser resolvido com alinhamento.
Quando o artífice protege as premissas - objetivo, critérios e validação - a execução volta a ser o que deve ser: a parte previsível. E resultados deixam de depender de heroísmo.
FAQ:
- Como sei se devo parar a produção para rever o projeto? Se o retrabalho já está a consumir mais tempo do que uma revisão curta consumiria, pare. Se há dúvidas estruturais (uso, carga, público, regras), pare ainda mais cedo.
- E se o cliente “não tiver tempo” para clarificar? Ofereça opções fechadas com consequências (“A dá prioridade a prazo, B a durabilidade”). A clarificação acontece quando há escolha real, não quando há perguntas abstratas.
- Isto aplica-se a trabalho criativo? Sim. Em criativo, a adequação insuficiente do projeto aparece como “não é bem isto” infinito. Critérios de tom, público e objetivo reduzem iterações.
- Qual é o menor protótipo que posso fazer? O que testa a maior incerteza com o menor custo: uma amostra, um trecho, uma página, um teste em contexto, uma versão 0.1 só com o essencial.
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