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Muitas obras falham porque este ponto nunca é discutido

Três homens discutem plantas arquitetónicas numa mesa com documentos, prancheta e telemóvel.

Há obras que derrapam apesar de um orçamento “bem feito” e de um cronograma cheio de datas. O problema, muitas vezes, não é falta de planeamento da construção, mas sim os pressupostos não expressos que ficam escondidos nas entrelinhas entre dono de obra, projectistas e empreiteiro. E isto é relevante porque, quando ninguém os põe em cima da mesa, a obra avança na mesma - só que avança para conflito, aditamentos e atrasos.

É aquele tipo de falha silenciosa: não aparece no desenho, não está no mapa de medições, mas está presente em cada decisão do estaleiro. E quando finalmente se discute, já é tarde e caro.

O ponto que quase nunca se discute (e que paga a factura)

Em quase todas as obras existe uma “versão mental” do projecto na cabeça de cada interveniente. O cliente imagina um resultado e um nível de acabamento. O empreiteiro imagina um âmbito de trabalhos “normal” para aquele preço. O fiscal imagina um método de execução. O arquitecto imagina que certas opções são óbvias.

O choque acontece quando essas versões não coincidem - e ninguém as alinhou no início. Não é má fé; é ambiguidade a trabalhar.

Quando um pressuposto não é dito, ele não desaparece. Só muda de forma: transforma-se em custo, atraso ou discussão.

Onde os pressupostos não expressos se escondem

Os pressupostos não expressos não vivem apenas em “detalhes”. Vivem no coração do planeamento: no que cada parte acha que está incluído, no que considera “qualidade mínima” e no que acredita ser “responsabilidade do outro”.

Alguns esconderijos clássicos:

  • “Está incluído” vs “está previsto”: preparação de suportes, regularizações, primários, impermeabilizações.
  • Tolerâncias e acabamentos: alinhamentos, juntas, esquadrias, textura de pintura, nivelamento de pavimentos.
  • Acessos e logística: grua, descarga, horários, condicionantes de vizinhança, ruído.
  • Interfaces entre especialidades: quem abre roços, quem fecha, quem repõe, quem testa.
  • Escolhas em falta: mapas de acabamentos incompletos, equipamentos “a definir”, marcas “ou similar”.

Repare no padrão: não são “erros técnicos”. São zonas cinzentas que parecem pequenas até ao dia em que bloqueiam a frente de trabalho.

Um exemplo realista: a casa que atrasou por causa de uma frase

Imagine uma moradia em remodelação. O orçamento diz “substituição de caixilharias” e o cronograma prevê duas semanas. O cliente assume que inclui remoção, remates interiores, estores e pintura da envolvente. O empreiteiro assume que só inclui fornecimento e montagem, com remates mínimos.

No dia da montagem, as novas caixilharias ficam colocadas, mas surgem vãos irregulares, reboco partido e caixas de estore degradadas. Alguém pergunta: “Quem trata disto?” Seguem-se três dias de telefonemas, um preço extra, e uma equipa parada porque a obra não pode avançar para acabamentos sem resolver os remates.

A frase “substituição de caixilharias” parecia clara. Não era.

O efeito dominó no planeamento

Quando um pressuposto falha, raramente falha sozinho. Ele puxa outros atrás, porque o planeamento da construção é uma cadeia: cada tarefa depende da anterior estar “pronta o suficiente”.

Os impactos típicos são previsíveis:

  • Aditamentos em cascata (cada um “pequeno”, todos somados enormes)
  • Replaneamentos semanais (a obra vive em modo incêndio)
  • Perda de sequências (equipas entram e saem, aumentando custos indirectos)
  • Discussão sobre responsabilidades (em vez de decisão sobre soluções)
  • Qualidade a descer (para compensar tempo e dinheiro perdidos)

O planeamento não falha no Excel. Falha no terreno, quando descobre que afinal havia duas obras diferentes a ser imaginadas.

Como trazer o assunto para a mesa sem criar tensão

Este tema assusta porque parece “desconfiança”. Na prática, é o contrário: é uma forma de reduzir surpresas e proteger relações.

O truque é tratar pressupostos como um item técnico, não como um julgamento. Em vez de “vocês não incluíram”, use “vamos fechar o âmbito”.

A conversa que quase ninguém faz (e que devia ser standard)

Antes de arrancar, faça uma reunião curta (30–60 minutos) só para alinhar pressupostos. Leve desenhos, mapa de acabamentos e orçamento, e saia com decisões registadas.

Perguntas simples que desbloqueiam muito:

  1. O que está explicitamente incluído? (por escrito, com exemplos)
  2. O que está explicitamente excluído? (idem)
  3. Que condições têm de existir para executar? (suportes, acessos, energia, água, autorizações)
  4. Que decisões do dono de obra estão pendentes? (e prazos para as fechar)
  5. Quais são as interfaces críticas? (entre especialidades e subempreiteiros)

Se a resposta for “isso é óbvio”, peça para traduzir “óbvio” em duas linhas de texto. É aqui que muitos mal-entendidos morrem.

Uma ferramenta simples: a “lista de pressupostos” do projecto

Não precisa de burocracia pesada. Precisa de um documento curto, anexado à adjudicação, que funcione como referência comum. Pense nisto como um mapa de expectativas.

Inclua, por exemplo:

  • Critérios de qualidade (tolerâncias, referências, amostras)
  • Sequência de trabalhos e janelas de decisão do cliente
  • Quem fornece o quê (equipamentos, materiais, consumíveis)
  • O que acontece quando se encontra “surpresa” (paredes ocas, humidades, instalações antigas)

Pode ser uma página. Mas tem de ser lida, aceite e usada.

Sinais de alerta de que há pressupostos por fechar

Se ouvir estas frases, pare e clarifique:

  • “Isso depois logo se vê.”
  • “Normalmente faz-se assim.”
  • “Está no preço, claro.”
  • “Isso é com o outro.”
  • “É só um pormenor.”

Os pormenores são exactamente onde a obra escorrega.

O que muda quando este ponto é discutido cedo

Não é magia: continuam a existir imprevistos. Mas a obra passa a ter um idioma comum e um processo para decidir rápido.

Os ganhos mais comuns:

  • Menos aditamentos por “surpresa”
  • Menos dias parados por dúvidas e interfaces
  • Decisões do dono de obra fechadas a tempo
  • Melhor controlo de qualidade (porque o critério foi combinado, não inventado)
  • Relação mais estável entre as partes

No fim, o objectivo não é planear tudo ao milímetro. É garantir que todos estão a construir a mesma obra - e não versões diferentes do mesmo sonho.

FAQ:

  • Como sei se o meu orçamento tem muitos pressupostos escondidos? Se tiver descrições genéricas (“trabalhos gerais”, “acabamentos”), muitos “ou similar”, ou itens sem método de execução e sem exclusões, é provável que existam pressupostos por clarificar.
  • Isto substitui fiscalização ou direcção de obra? Não. Ajuda a reduzir ambiguidades, mas fiscalização e direcção de obra continuam essenciais para validar execução, qualidade e decisões em obra.
  • Qual é o melhor momento para discutir pressupostos? Antes da adjudicação e novamente na reunião de arranque, quando o empreiteiro já reviu projecto, condições de obra e sequência de trabalhos.
  • E se o empreiteiro não quiser “perder tempo” com isto? Enquadre como redução de risco: uma hora a alinhar âmbito evita dias parados e discussões. Se houver resistência total, é um sinal de maturidade fraca para obras com complexidade.

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