O orçamento de remodelação costuma nascer limpo: uma folha, uma lista de trabalhos, um total que parece dar para tudo. As ultrapassagens de custos começam quase sempre no mesmo sítio - não no preço do material, mas num erro invisível na forma como se decide o que “fica de fora”. E quando isso acontece, não é um azar de obra: é um sistema que empurra o projecto para derrapagens previsíveis.
Vi isto acontecer numa cozinha pequena, daquelas onde se acha que “é só trocar móveis e chão”. O orçamento estava certinho, com três propostas e um valor que cabia no que a família tinha poupado. Depois começou o desfile silencioso: um rodapé que afinal não dava, uma tomada que tinha de mudar, uma parede que precisava de regularização. O dinheiro não desapareceu num grande choque. Escorreu em micro-decisões.
O erro invisível: confundir “preço” com “âmbito”
O erro não é pedir poucos orçamentos. Nem é escolher o mais barato. É uma coisa mais subtil: aceitar um número sem fixar, por escrito, o âmbito exacto do que está incluído - e, sobretudo, do que não está.
Na prática, duas propostas com o mesmo total podem significar obras completamente diferentes. Uma inclui preparação de superfícies e protecções; a outra assume que “já está pronto”. Uma contempla remoção e vazadouro; a outra deixa “a cargo do cliente”. Quando a obra começa, o que estava “assumido” transforma-se em extra, e o extra transforma-se em normal.
“O orçamento não rebenta quando a obra é cara. Rebenta quando o âmbito é elástico.”
Sinais de que o âmbito está vago aparecem cedo: frases como “a confirmar em obra”, “conforme necessidade”, “não incluído”, “por medição” sem referência a quantidades, ou linhas demasiado genéricas (“remodelação WC completo”).
Porque é que isto destrói o orçamento sem ninguém dar por isso
Há uma sensação enganadora de controlo quando existe um valor final e um prazo. O cérebro relaxa: “já tratámos dessa parte”. Só que a obra real vive de transições - demolição, preparação, compatibilizações, acabamentos - e é aí que o vago cobra juros.
O fenómeno repete-se por três razões simples:
- Interdependências: mexer num elemento obriga a mexer noutro (uma base de duche puxa canalização, que puxa azulejo, que puxa pintura).
- Decisões tardias: escolhas de torneiras, cerâmicos e iluminação feitas “mais perto da data” quase sempre sob pressão e com menos alternativas.
- Orçamentos comparados como maçãs com maçãs: o total parece comparável, mas as linhas não são equivalentes.
E depois há o clássico: a obra revela o que a casa escondia. Humidade, prumos fora, instalações antigas. Isso é normal. O que não é normal é o orçamento não ter um plano para o desconhecido.
Um método curto para “fechar” o âmbito antes de assinar
Não precisa de um caderno de encargos de 80 páginas para reduzir risco. Precisa de uma lista curta que obrigue todos a falar da mesma obra.
Antes de adjudicar, faça isto em 30 minutos com o empreiteiro (ou com quem lhe está a apresentar a proposta):
- Peça uma lista de inclusões e exclusões, em linguagem simples, por divisão.
- Transforme “trabalhos diversos” em itens medíveis (m², unidades, metros lineares).
- Confirme quem fornece o quê: materiais, ferragens, torneiras, iluminação, electrodomésticos, loiças.
- Exija a linha de demolição e remoção de entulhos (inclui transporte? vazadouro? protecções?).
- Pergunte pelas preparações: regularizações, primários, impermeabilização, autonivelante, reforços.
O objectivo não é desconfiar. É criar um acordo onde o “extra” é uma excepção verdadeira - não a forma normal de a obra andar.
A almofada que ninguém quer pôr no Excel (mas devia)
Mesmo com âmbito fechado, há sempre incerteza. A diferença entre uma obra tranquila e uma obra em modo incêndio é ter uma almofada prevista e nomeada.
Uma regra prática ajuda: reservar uma percentagem para imprevistos, ajustada ao tipo de intervenção. E definir como é que essa reserva pode ser usada: precisa de validação por escrito? tem tecto? é por etapa?
| Tipo de obra | Reserva típica | Porquê |
|---|---|---|
| Acabamentos sem mexer em redes | 5–10% | Menos surpresas “dentro das paredes” |
| Remodelação de cozinha/WC | 10–15% | Redes, impermeabilizações, compatibilizações |
| Remodelação total/edifício antigo | 15–25% | Instalações antigas, níveis, patologias |
Se esta linha não existe, o orçamento parece mais baixo - mas a conta só está a ser adiada.
Pequenas perguntas que evitam grandes ultrapassagens de custos
Há perguntas que parecem chatas e, por isso, são evitadas. São precisamente as que protegem o orçamento de remodelação.
Leve este mini-checklist para a próxima conversa:
- “O que é que, nesta proposta, costuma aparecer como extra?”
- “Está incluída a impermeabilização? Onde? Com que sistema?”
- “Quem é responsável por reparar paredes/tetos depois de abrir roços?”
- “As medições estão fechadas ou podem variar? O que faz variar?”
- “Como é que aprovamos alterações: mensagem, email, ficha de obra?”
A resposta não tem de ser perfeita. Tem de ser concreta o suficiente para não se transformar em discussão quando a casa já está em pó.
O que muda quando o âmbito está claro
Curiosamente, não é só o dinheiro que melhora. O ritmo da obra também. Quando as inclusões estão definidas, há menos “paragens para decidir”, menos idas urgentes à loja e menos sensação de que tudo está a ser inventado no momento.
E há um efeito psicológico importante: o orçamento deixa de ser um número para “tentar cumprir” e passa a ser um plano de execução. O seu papel muda de pagar e esperar para acompanhar e validar. É aí que as ultrapassagens de custos deixam de ser destino e passam a ser evento raro, com causa identificável.
FAQ:
- Como comparo orçamentos se cada empreiteiro escreve de forma diferente? Crie a sua lista-base de itens (demolições, preparações, redes, acabamentos, remoções) e peça que respondam item a item. Se um não quiser, já é informação.
- O mais barato é sempre um problema? Não. É um problema quando é barato por omissão de âmbito. Um bom sinal é quando a proposta descreve preparações e responsabilidades com detalhe.
- E se eu não souber quantidades (m², unidades)? Peça medições em obra antes de fechar preço, ou aceite “por medição” apenas com preços unitários claros e limites de variação acordados.
- A reserva para imprevistos não incentiva gastos? Só incentiva se não houver regra de aprovação. Defina que qualquer uso da reserva precisa de validação por escrito e justificação técnica.
- Quando é tarde demais para corrigir o âmbito? Quando os trabalhos já avançaram e as decisões viraram factos. Quanto mais cedo pedir clarificação (idealmente antes da adjudicação), menos paga por pressa.
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