Parece sempre começar com boas intenções: reuniões produtivas, um cronograma “realista”, uma equipa motivada. Mas o planeamento de projeto só se mantém sólido quando a definição de âmbito está clara e protegida no dia a dia, especialmente em contextos com várias partes interessadas, entregas por fases e decisões rápidas. Quando isso falha, o projeto não explode de uma vez - desarruma-se aos poucos, até que ninguém reconhece o plano original.
O erro é silencioso porque, no momento, até parece sensato: “é só mais uma pequena funcionalidade”, “já que estamos aqui, aproveitamos e…”. Só mais tarde se percebe que cada “só” foi somando custo, tempo, risco e frustração.
O erro silencioso: deixar o âmbito “respirar” sem regras
A maior parte dos projetos não descarrila por falta de esforço. Descarrila porque o âmbito fica elástico: cresce, encolhe, muda de forma - sem um mecanismo simples para decidir o que entra, o que sai e o que muda.
Isto tem um nome conhecido (scope creep), mas na prática parece mais inocente. Acontece quando pedidos chegam por canais diferentes, decisões não ficam registadas e ninguém quer ser “a pessoa que diz não”. O resultado é um plano que já não serve para orientar, apenas para justificar atrasos.
Se o âmbito muda, o plano tem de mudar com ele - ou o plano passa a ser ficção.
Os sinais de alerta que quase toda a gente ignora
Há pistas muito consistentes de que o âmbito está a fugir ao controlo. O problema é que, no ritmo diário, estes sinais parecem “normais”.
- Tarefas que começam sem critérios claros de aceitação (“faz-se e logo se vê”).
- Reuniões onde se decide, mas ninguém escreve a decisão final.
- A mesma funcionalidade é discutida três vezes, com conclusões diferentes.
- “Já agora” vira um tipo de requisito, não uma exceção.
- O backlog cresce mais depressa do que a equipa entrega.
Um projeto pode estar a entregar muito e, mesmo assim, estar a caminhar para o caos. A diferença está em entregar o que foi combinado - não apenas “coisas”.
Três reflexos para travar o caos antes de aparecer
Tal como num pagamento seguro há um ritual curto que evita acidentes, aqui também funciona um micro-ritual. Não precisa de burocracia; precisa de consistência.
1) Fazer uma pausa de 30 segundos antes de dizer “sim”
Quando surge um pedido novo, imponha um intervalo curto e obrigatório. Não para bloquear, mas para enquadrar.
Perguntas mínimas: - Isto altera a definição de âmbito? - Qual é a consequência no prazo/custo/qualidade? - O que sai para isto entrar?
Se nenhuma destas perguntas tiver resposta, ainda não é um “sim”. É um “vamos avaliar”.
2) Traduzir pedidos em decisões rastreáveis
Um pedido em chat não é uma decisão. Uma conversa de corredor não é uma decisão. Uma nota mental também não.
Regra simples: cada alteração relevante tem de ficar registada num único sítio (ticket, ata curta, comentário no épico) com: - o que muda, - quem aprovou, - quando entra (agora? próxima release?), - o impacto assumido.
Isto reduz retrabalho e evita o clássico “mas eu pensei que…” que destrói semanas.
3) Proteger o triângulo: âmbito, prazo, recursos
Quando o âmbito aumenta e nada mais muda, alguém vai pagar a conta. Normalmente paga-se com horas extra, atalhos técnicos, dívida e desgaste.
Trate como uma troca explícita: - Se o âmbito aumenta, o prazo aumenta ou entram recursos, ou reduz-se outra coisa. - Se o prazo não pode mexer, o âmbito tem de ser negociado com cortes. - Se a equipa não pode crescer, o plano precisa de menos variáveis.
A clareza aqui é uma forma de respeito: pela equipa e pelo cliente.
Exemplo concreto: a funcionalidade “pequena” que virou um segundo projeto
Imagine uma equipa a construir um portal interno. O âmbito inicial inclui login, pesquisa e exportação de relatórios. A meio, alguém pede: “Já agora, dá para ter permissões por departamento?”
À primeira vista, parece um ajuste. Na realidade, abre uma cadeia: modelação de perfis, migração de utilizadores, testes de segurança, ecrãs de gestão, suporte. Se entrar sem decisão formal, o cronograma mantém-se “igual” apenas no Excel - no terreno, vira pressão e improviso.
O antídoto é simples: tratar o pedido como mudança de âmbito. Pode entrar, sim, mas com uma escolha clara: adiar exportação, mover a data, ou reforçar a equipa. Sem escolha, é só dívida disfarçada.
Mini check-up de definição de âmbito (para usar toda a semana)
Antes de avançar para a próxima sprint, release ou fase, confirme estes pontos. Se falhar um, o risco já está a crescer.
- O que vamos entregar está descrito em termos observáveis (não desejos).
- Há critérios de aceitação mínimos para os itens principais.
- Existe uma lista explícita do que não está incluído (out of scope).
- Mudanças têm um canal e um decisor definidos.
- As partes interessadas sabem quando podem pedir alterações - e quando não.
Caixa de ferramentas: pouco peso, muito efeito
| Ferramenta | Como ajuda | Quando usar |
|---|---|---|
| Critérios de aceitação | Evitam interpretações e retrabalho | Antes de iniciar desenvolvimento |
| Registo de decisões | Fecha discussões e dá rastreabilidade | Após reuniões e mudanças |
| “Trade-off” explícito | Obriga a escolher o custo da mudança | Sempre que o âmbito mexe |
FAQ:
- O que é “definição de âmbito” em termos práticos? É a descrição clara do que o projeto entrega, para quem, com que limites e com que critérios de aceitação - incluindo o que fica fora.
- E se o cliente precisar mesmo de mudanças constantes? Então o projeto precisa de um modelo que aceite isso (priorização contínua, releases curtas, orçamento por capacidade) e de regras simples para aprovar trocas.
- Como dizer “não” sem criar conflito? Troque o “não” por uma escolha: “podemos fazer isto, mas então adiamos X” ou “entra na próxima fase com impacto Y”. A tensão baixa quando o custo fica visível.
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