Ninguém chega a uma reunião de obra a pensar em litígios, mas é exatamente aí que muitos nascem. Um acordo de construção serve para alinhar expectativas entre dono de obra, empreiteiro e fiscalização, e a clareza do âmbito é o ponto que decide se esse alinhamento vai aguentar o primeiro imprevisto. Se não estiver cristalino o que está incluído (e o que fica de fora), a obra não “atrasará por azar”: vai sofrer por desenho.
Já vimos este filme em moradias, lojas e reabilitações: o preço parecia justo, o prazo parecia possível, o cliente achava que “era óbvio”. Até ao dia em que alguém diz “isso não está no contrato”, e o estaleiro fica suspenso entre um e-mail e uma fatura extra.
O ponto que mais falha: o que, exatamente, está a ser feito?
A clareza do âmbito não é um anexo burocrático; é a lista de fronteiras da obra. É o que impede que uma frase vaga (“acabamentos incluídos”) se transforme numa guerra sobre marcas, quantidades, preparação de suportes e responsabilidade por reparações.
No papel, o âmbito devia responder a perguntas simples, sem interpretação criativa: quais as áreas intervencionadas, que trabalhos entram em cada especialidade, que materiais e desempenhos são esperados, e que tarefas ficam assumidas pelo dono de obra (ou por terceiros). Na prática, é aqui que se escondem os “buracos” que depois aparecem como derrapagens.
Pense nisto como um mapa. Se o mapa não tem limites, qualquer desvio vira discussão - e cada discussão consome dias, equipa e confiança.
Como a falta de âmbito claro vira atraso (mesmo quando toda a gente “tem boa fé”)
O problema raramente é má intenção. É o efeito dominó de decisões que ninguém formalizou.
Um exemplo comum: a proposta diz “pinturas incluídas”. O empreiteiro orçamentou duas demãos em paredes já prontas; a casa, afinal, precisa de barramento integral e primário anti-humidade em duas divisões. Ninguém mentiu: apenas ninguém escreveu.
Outro: “cozinha incluída”. Inclui projeto? Inclui eletrodomésticos? Inclui ligações? Inclui o reforço elétrico para placa de indução? Quando estas respostas aparecem tarde, aparecem como trabalhos a mais - e trabalhos a mais pedem preço e prazo.
Os sinais de que o âmbito está fraco costumam ser estes:
- Descrições genéricas sem quantidades (m², ml, unidades) ou sem localização.
- Materiais “equivalentes” sem critérios de equivalência (classe, desempenho, garantia).
- Especialidades sem fronteiras (quem faz os furos? quem fecha os roços? quem repõe azulejo?).
- “Inclui tudo o necessário” como frase-manta que não cobre nada.
O “checklist” de âmbito que evita 80% das discussões
Não precisa de um contrato com 200 páginas para ter um âmbito sólido. Precisa de um documento que qualquer pessoa no estaleiro consiga ler e aplicar.
Inclua, no mínimo:
- Objeto e limites: morada, zonas intervencionadas, o que não é mexido.
- Medições e quantidades: m² de pavimento, m² de pintura, nº de pontos de luz, ml de rodapé.
- Especificações: marcas/modelos ou, se não existirem, requisitos (ex.: “pavimento AC4, classe X, cor a definir até data Y”).
- Preparações incluídas: demolições, regularizações, impermeabilizações, primários, proteção de áreas existentes.
- Interfaces entre especialidades: responsabilidades de abertura/fecho de roços, testes, comissionamento.
- Exclusões explícitas: tudo o que não entra, por mais “óbvio” que pareça.
- Entregáveis e critérios de aceitação: ensaios, fichas técnicas, tolerâncias, limpeza final, telas finais.
- Cronograma por marcos: não só uma data final; marcos (demolições concluídas, instalações testadas, acabamentos).
Há um detalhe que poupa muitas chamadas às 22h: uma tabela simples de “inclui / não inclui / a cargo de” para itens sensíveis (cozinha, caixilharias, louças, iluminação, AVAC, exteriores).
Alterações vão acontecer. A diferença é se viram caos ou procedimento
Mesmo com o melhor âmbito, surgem descobertas: uma viga onde não devia, uma prumada degradada, um suporte que não aceita revestimento. A obra real tem surpresas; o acordo de construção deve ter um caminho claro para as tratar.
Um método curto e funcional:
- Pedido de alteração por escrito (o que muda e porquê).
- Orçamento e impacto no prazo antes de executar.
- Aprovação formal (e-mail serve, desde que seja inequívoco).
- Registo de versão do âmbito atualizado.
Quando isto não existe, a obra entra em modo “vamos vendo”. E “vamos vendo” é a forma mais cara de gerir um estaleiro.
“O que mata uma obra não é mudar. É mudar sem saber quem paga e quando acaba.”
Um guia de bolso para a próxima reunião
Se só puder fazer cinco perguntas, faça estas - e peça respostas que possam ser anexadas ao acordo:
- Onde está a lista de trabalhos por divisão/área, com quantidades?
- Que preparações estão incluídas antes dos acabamentos?
- O que está explicitamente excluído?
- Quem é responsável por cada interface entre especialidades?
- Como se aprova uma alteração (preço + prazo) antes de executar?
| Ponto crítico | O que esclarecer | Impacto na obra |
|---|---|---|
| Limites do trabalho | Zonas incluídas/excluídas | Evita “já agora” e derrapagens |
| Medições e specs | Quantidades + desempenho | Preço comparável e menos extras |
| Processo de alterações | Aprovação e registo | Menos conflitos e paragens |
FAQ:
- O que significa “âmbito” num acordo de construção? É a definição concreta do que será executado: trabalhos, quantidades, materiais, limites, responsabilidades e exclusões.
- Posso assinar e “definir materiais depois”? Pode, mas fixe critérios e prazos (ex.: classes, gamas de preço, datas de escolha). “Depois vemos” costuma virar custo e atraso.
- Como lidar com trabalhos imprevistos (ex.: humidades escondidas)? Previna com um procedimento de alteração: identificar, orçamentar, aprovar impacto em prazo e só depois executar, com registo escrito.
- Exclusões não parecem falta de compromisso? Não. Exclusões claras reduzem fricção e protegem ambos os lados, porque evitam expectativas implícitas.
- Quem deve escrever o âmbito: dono de obra ou empreiteiro? Idealmente é construído a duas mãos, com base em projeto/medições. O importante é ficar verificável e anexado ao acordo.
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